A blogosfera tem destas surpresas: estamos descontraídos visitando os blogs que gostamos e de repente caímos num post que fala de alguma coisa que ficou esquecida muito lá atrás, na nossa infância. As memórias jorram então em catadupa e descobrimos que alguém que nunca conhecemos pessoalmente, mas com quem nos identificamos, sem querer, dá-nos as peças que faltavam para completar um puzzle inacabado. Diana é oftalmologista, "oftalma" como ela gosta de se apresentar, "porque a palavra tem alma no fim". É extrovertida, excêntrica, sem medo de se expor.
Neste texto ela conta os sentimentos que a movem no momento, a mudança de casa e o que verdadeiramente importa para ela nesta fase da vida. E fala de quadros. E de pintores. De Chico da Silva e de Chabloz. E do Ceará, nordeste do Brasil. Acontece que meus pais são do Ceará, temos dois Chico da Silva na parede e Chabloz frequentava a nossa casa em Lisboa. E pintou o retrato de minha mãe, a recordação mais viva que temos dela, hoje. Era o início dos anos 70, eu vinha da escola e via minha mãe imóvel, em pose. A sala de casa imersa na fumaça dos cigarros de Chabloz, o cavalete, o desenho na tela que, dia após dia, ia tomando forma, o cheiro das tintas a óleo que o pintor combinava na paleta. Tudo me encantava. E tudo é autêntico no quadro, o penteado armado, a serenidade, o vestido, a cortina branca atrás. Mas também tem ilusão: o cadeirão verde não é na verdade um cadeirão verde mas uma cadeira de madeira com um pano verde em cima, e a barriga da minha mãe não é uma barriga oca e sim uma barriga com uma criança dentro. Que ela não sabia que estava ali mas que Chabloz assegurava que sim, baseado no que os seus olhos, habituados a observar as formas e as curvas do corpo humano, captavam. A peça que faltava no puzzle, era os dois quadros de Chico da Silva que assombraram a minha infância e de minhas irmãs e que nos perturbam até hoje. São quadros
naif que representam
bichos fantásticos, figuras ameaçadoras saídas da imaginação do autor, que sempre vimos em casa, e cuja história de como apareceram por lá perdeu-se no tempo. Afinal, soube pela Diana, Chico era protegido de Chabloz e de repente, tudo fez sentido. Foi Chabloz quem deixou as telas com o meu pai, provavelmente para que este encontrasse comprador. As telas foram enroladas, jogadas num armário e ali ficaram preteridas, até acabarem, anos mais tarde, nas paredes da casa de praia, onde permanecem, até hoje. No corredor, sítio de passagem, local secundário, porque são quadros que continuam a nos incomodar. Seria tão mais fácil retirá-los da parede e voltar a esquecê-los no armário. Mas não, eles estão lá, e agora percebo que talvez seja para nos remeter à nossa infância, à sala de casa transformada em atelier de artista, ao olhar sereno de minha mãe, à expetativa da chegada de uma irmã, às saudades. É assim a arte, causadora de tantas emoções que vão muito para além do que a obra representa ou os olhos possam enxergar.