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PRESENTE CAÍDO DO CÉU

Há alguns meses, meu pai fez 90 anos. Está ótimo de saúde, ágil, com uma cabeça fenomenal. O seu temperamento dinâmico e positivo fá-lo continuar no ativo como presidente das empresas que fundou. Nas horas vagas, joga ténis e pedala. Enfim, pode ter falhado em alguns outros papéis que tenha desempenhado (quem nunca?) mas no quesito viver a vida proactivamente e dedicar-se ao trabalho com energia e perspicácia, sempre foi uma inspiração. Uma pessoa como ele jamais poderia deixar de celebrar a chegada de mais uma década e garanto-vos que fê-lo em grande estilo: duas festas, uma no seu país de origem, outra na terra que o acolheu, com grande parte da família reunida e muuuuitos amigos. Tantos, que uma das minhas filhas chegou a perguntar, admirada: como se pode ter tantos amigos aos 90 anos??!!!? Como imaginam, duas festas em continentes diferentes e a poucos dias de distância uma da outra, envolve esforços de preparação e tudo foi organizado em tempo recorde. Uma comemoração ficou a meu cargo, a outra foi responsabilidade de uma das minhas irmãs; trocamos ideias, partilhamos opiniões e num trabalho de equipa a coisa fluiu e correu bem. Pelo meio desses preparativos ocorreu-me um pensamento frívolo mas óbvio: o que usar? Sou complicada nesse tema, pois não uso vestidos ou saias, nem sigo modas mas ao mesmo tempo não gosto de vestir o trivial e tenho minhas preferências: pantalonas, camisas, certos tipos de decotes, assimetrias e cores fortes. Estava eu nesta, digamos, indefinição, quando fazendo uma limpeza ao apartamento do meu pai em conjunto com a minha irmã, esta encontra uma caixa contendo o que seria uma roupa da minha mãe, descosida. Minha mãe tinha esta característica de desmanchar as roupas quando enjoava delas ou pretendia altera-las. Era no tempo em que se ia à modista e como a abundância de lojas de tecido não era como nos dias de hoje, imagino que este processo de reciclagem seria algo comum há 40, 50 anos. "Toma" diz a minha irmã, "és a única de nós que reutilizas tecidos" completa ela referindo-se aos meus trabalhos de costura, e entrega-me a caixa. Olho para o seu  interior, sou imediatamente atraída pelos desenhos em roxo e laranja dos tecidos e vem-me subitamente à memória uma imagem muito ténue da minha mãe, nos anos 70, cabelo armado, óculos escuros de tamanho XXL, vestido camiseiro e sapatos plataforma. "Achei a minha roupa para a(s) festa(s) do pai" pensei eu ao mesmo tempo que investigava, descobria que apenas metade do vestido estava ali e achava estranho nunca antes ter me deparado com esta caixa. E se as festas saíram em tempo recorde, a roupa também. O meio vestido transformou-se rapidamente em blusa e sem a possibilidade de levar duas mangas, tornou-se uma blusa de uma manga só, a minha cara  no que toca às cores, ao padrão do tecido e ao modelo. Senti-me tão, mas tão bem quando a vesti, era tão eu, estava tão na minha pele que as pessoas à minha volta notaram. Minha mãe já partiu há quase 25 anos, não costumo pensar que ela ainda ande por aí e olhe por nós. Não. Acho mesmo que ela merece o descanso dela e nem sequer tenho o costume de a importunar com pedidos. Ela é hoje em dia uma memória terna, doce, muitas vezes hilariante. Mas desta vez, ousei acreditar que foi esta a forma que ela encontrou de se fazer presente numa ocasião tão importante para o meu pai e para toda a família. E fiquei tão feliz com o presente, literalmente caído do céu.